Artigo de Marcos A. Avila publicado originalmente em uma data distante no extinto fórum “A Era de Aquários”
Manifesto do Aquarista Responsável
1) Para cada espécie aquática, existe um conjunto de condições acessíveis (tamanho mínimo de aquário, companheiros, parâmetros da água, nutrição, etc.) nas quais ela pode ser mantida apropriadamente em cativeiro sem perda geral na sua qualidade de vida.
2) Para cada espécie aquática, existe um conjunto de procedimentos acessíveis para desenvolver programas de reprodução comercial, ou de coleta controlada, de forma a garantir um desenvolvimento sustentável para o ramo de aquarismo sem causar ameaça a longo prazo para as populações selvagens.
3) O aquarismo responsável é baseado na busca, aprendizado, desenvolvimento e promoção da consciência a respeito destas condições e procedimentos, tal que a nossa prática amadora ou profissional do hobby não ocorra às custas do bem estar dos nossos animais de estimação, nem em detrimento do ecossistema.
Introdução
Você já parou para pensar se o que está fazendo como aquarista é certo ou errado do ponto de vista moral? Já foi questionado com respeito a isso? Saberia defender a sua posição? Esse é um assunto bastante complexo que precisa ser resolvido dentro da cabeça de cada um, pois envolve muitos fatores culturais, religiosos e de criação familiar.
Pelo mundo afora vamos encontrar gente de todo tipo, desde os que não estão nem aí se um peixe está sendo maltratado ou não pois ‘afinal é só um peixe’, até os que santificam qualquer animal como sendo uma criatura ‘divina’ e portanto não cabe ao homem decidir sobre a vida e a morte deles. Entre estes dois extremos existe uma vasta faixa de possibilidades para você se posicionar moralmente, mas o problema é que muita gente acaba formando sua opinião ou ‘moral’, pendendo para um lado ou para outro, sem sequer ter um mínimo de informação que fundamente a sua posição ou, pior ainda, baseado em mitos e conceitos simplesmente errados. O dilema moral de um aquarista responsável e preocupado na verdade são dois:
- Ao comprar os peixes não estamos sustentando um ramo de atividade que promove exploração da natureza?
- Um peixe mantido em cativeiro, sem liberdade de ir onde quiser, não leva uma vida infeliz?
Neste artigo vou expor um pouco da minha própria visão no assunto, que obviamente vai pender em favor do aquarismo responsável e consciente que é a proposta geral deste site inteiro, mas espero também conseguir te dar alguns elementos menos subjetivos para você pensar e tirar as suas próprias conclusões.
Criação vs. Coleta
Para abordar corretamente o primeiro dilema, a primeira coisa importantíssima a se perceber é a distância ENORME que existe entre um peixe criado em cativeiro e um peixe coletado da natureza. Como infelizmente ambos os tipos são vendidos sem distinção nas lojas, é comum que o aquarista não perceba a importância desta diferença.
É preciso entender que no caso de criações, os peixes têm tanto a ver com a natureza e ecologia quanto aquele frango ou boi que você comeu no almoço de hoje! Esses peixes foram CRIADOS por nós humanos em aquários ou grandes tanques de reprodução, com o objetivo bem específico de serem vendidos para alguém que vai obter satisfação por tê-lo em sua casa, e em troca gerar receita ao seu criador e ao comerciante que o vendeu. A única diferença dele em relação ao frango ou ao boi é o objetivo final ao qual ele é destinado. Nesse aspecto os peixes ornamentais devem ser encarados no mesmo nível de cães e gatos domésticos. Acho que estão até em vantagem em relação ao frango e ao boi, exceto é claro os pobres peixinhos que vão parar em aquários totalmente impróprios (a discussão sobre mitos do aquarismo e o que é um aquário apropriado para cada espécie fica para outro artigo).
Felizmente, pelo menos no aquarismo de água doce, uma fração enorme das espécies mais comumente encontradas nas lojas já são criadas em larga escala, e portanto um aquarista procurando posicionar-se moralmente pode perfeitamente curtir o hobby comprando apenas espécies já criadas em cativeiro, equiparando o seu hobby com a criação de cães e gatos como já mencionado, e sem nenhum impacto na natureza. Uma boa loja de aquarismo sempre saberá dizer a você quais espécies das disponíveis provém de criadores comerciais e quais são coletadas.
Um argumento a mais e extremamente positivo para quem deseja posicionar-se desta maneira é que já existem diversas espécies de peixes que estão seriamente ameaçadas e algumas já até extintas na natureza, não por causa de coleta excessiva mas devido à redução ou destruição do seu ambiente natural pelo avanço da civilização em nome do ‘progresso’ (leia-se desmatamento, poluição, etc) e estas espécies só continuam existindo e tendo chances de um dia serem reintroduzidas na natureza devido à criação comercial delas em cativeiro para o aquarismo!
Já no caso do aquarismo marinho a situação geral se inverte…a esmagadora maioria das espécies ainda é coletada da natureza. Ainda estamos engatinhando no lento processo de compreensão e desenvolvimento das técnicas de como reproduzir peixes marinhos em cativeiro, por isso o nível de conscientização e responsabilidade do aquarista marinho deve ser bem maior.
Este segundo caso, dos peixes que pertenciam ao mundo natural e foram coletados para manutenção em aquários domésticos, inegavelmente afeta a natureza em maior ou menor grau. Ainda assim, não devemos imediatamente condenar a prática sem antes entender alguns aspectos importantes sobre ela. São necessários estudos cuidadosos para saber se a natureza está sendo capaz de repor essa perda sem prejuízo a longo prazo para ela. Isto é o que se chama desenvolvimento sustentável, um termo bastante atual em quase todos os ramos que fazem exploração de uma forma ou de outra dos recursos naturais.
A prática questionável acontece quando a exploração (no nosso caso, a coleta dos peixes) é feita demasiadamente ou descontroladamente, (por exemplo em épocas de acasalamento), o pode que levar certas espécies a reduzirem continuamente a sua população até passarem a sofrer risco de extinção. Felizmente existem estudiosos, entidades e órgãos governamentais (por exemplo o IBAMA) que dentre outras coisas estão fazendo esforços sérios e concretos para entender a situação de cada espécie, regulamentar melhor a atividade de coleta e garantir o desenvolvimento sustentável com respeito a elas. A Era de Aquários já foi inclusive consultada pelo IBAMA a esse respeito e estará sempre à disposição para ajudar no que puder.
Pois bem, mesmo o peixe sendo coletado, como eu já disse acima, se isso for feito de tal modo que a natureza seja capaz de repor a perda a longo prazo (e a natureza tem um capacidade fantástica de fazer isso, basta usar o bom senso e não abusar dela), é possível resolver o dilema moral da exploração dos recursos naturais, e ficar apenas com o dilema moral da qualidade de vida do peixe em si, que estará no cativeiro.
Liberdade e Felicidade
Neste ponto entra uma segunda confusão muito comum, principalmente entre leigos e conservacionistas radicais, que é a armadilha do “antropomorfismo”. Essa palavra complicada significa transferir aos animais (ou qualquer outra coisa) nossos conceitos, características e valores humanos. Simplificado para o nosso caso em questão, é o seguinte: a gente tem um conjunto de valores, expectativas, metas, etc, características da raça humana, e quando essas coisas nos são reprimidas ou negadas, ficamos infelizes. Aí, olhamos para um animal e se ele parecer estar sendo negado um valor que para nós humanos é importante, automaticamente concluímos que ele só pode estar infeliz também.
Mas isso não é necessariamente verdade, é preciso saber se aquele valor ou expectativa é realmente importante para o animal em questão. Só pra dar um exemplo bem gritante, imagine alguém achar que um cachorro deve ser infeliz porque só bebe água a vida toda, e nunca experimentou nada delicioso como um guaraná ou um suco de laranja.
De maneira geral, as expectativas dos animais na vida são MUITO, mas MUITO menos complexas que a de nós humanos. Eu lembro de ter visto um estudo americano de comportamento de cães, demonstrando que o conceito de “paraíso” para um cão parece ser realmente nada mais que ficar deitado o dia todo, a vida toda, sem precisar fazer absolutamente nada, o que para um ser humano típico seria um suplício a longo prazo.
Voltando aos peixes em aquário, é muito importante não cair na armadilha de imaginar como “nós” nos sentiríamos se estivéssemos na mesma situação deles, mas sim buscar indícios de que eles estejam tendo as suas expectativas razoavelmente preenchidas. E isso obviamente não é muito fácil de identificar, mas de maneira geral podemos dizer que, se o peixe tem uma alimentação satisfatória, apresenta uma saúde boa, tem uma interação normal com os seus companheiros de aquário (podendo até formar pares e acasalar, mas isso não é um requisito necessário pois também não acontece para todos na natureza), e o aquário é tal que ele tem um desenvolvimento normal, então esse peixe está verdadeiramente “feliz”.
Não estou aqui querendo dizer que peixes ou quaisquer outros animais sejam meros autômatos, escravos da programação dos seus instintos. Muito pelo contrário, como todo criador de peixes com alguns anos de estrada, posso identificar perfeitamente (sem ‘antropomorfismo’) a presença de humores individuais em muitos dos peixes que crio, conferindo a cada um uma personalidade única característica de um ser superior, inteligente e emocional.
Mas repito, apesar do assunto ser atual e polêmico, me parece bastante razoável supor que os peixes em geral têm expectativas muito mais simples e básicas do que nós: comer, dormir, acasalar, e pouco mais. Ou seja, um peixe não vai daqui até ali na natureza porque ele quer regozijar na sua liberdade e no seu arbítrio de poder fazê-lo, nem porque ele quer apreciar o trajeto até lá enquanto discute com os companheiros o milagre da sua existência. Ele vai até ali porque quer ficar longe de potenciais predadores, achar comida, ou talvez uma companheira. Se a comida e a companheira estiverem aqui mesmo e os predadores não estiverem, melhor! Pra que ir até lá? “Liberdade” é um valor racional e bastante humano, é preciso tomar muito cuidado ao transferi-lo para um animal.
Enfim, já tendo passado por crises e até abandonado o hobby por um tempo no passado por causa de dilemas morais assim, baseado nos argumentos expostos aqui neste artigo hoje em dia eu tenho a convicção de que os meus aquários são tais que os peixes gostam de onde estão morando, e tenho também a convicção de que o esforço coletivo dos aquaristas responsáveis, em particular os que têm presença forte na internet, está tendo um efeito muito mensurável na avanço do nosso hobby. O importante é ter essa preocupação em mente todo dia ao olhar como estão nossos peixes, e sempre fazer o possível pra manter e melhorar no que puder.
Agradecimentos: Obrigado a Flávia Carvalho, Amaury De Togni, Damian Jones e William Banik pelas sugestões que ajudaram a melhorar esse texto!
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